sábado, 15 de maio de 2010

João M. F. Camargo - um naturalista dedicado às abelhas (20.06.1941 - 07.09.2009)
Silvia Regina de Menezes Pedro
Departamento de Biologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Av. Bandeirantes, 3900, 14040-901 Ribeirão Preto - SP. silviarmp@ffclrp. usp.br
 
 
Pontinhos, milhares deles, e dias depois, após horas ininterruptas de trabalho com a pena e o nanquim, lá estava: uma perfeita representação das obras arquitetônicas das abelhas, um magnífico ninho, composto por milhares de pontos, ilustrando milhões de anos de evolução. Era assim que o Professor Camargo, sempre impecável, nas suas camisas de linho, passava a maior parte do dia, ou desenhando, ou observando na lupa, preciosos detalhes nas formas das abelhas, em sua mesa de bálsamo (talhada "na enxó", por ele mesmo-mais uma obra de arte!), na sua sala, ao lado da coleção de abelhas, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo; isso, quando não estava no mato, estudando e coletando abelhas-era assim que ele se sentia mais a vontade.
Em tudo o que fazia, havia muita dedicação, quer nos desenhos, quer nos trabalhos científicos, ou nos cuidados com a coleção de abelhas que ele começou a montar nos idos de 1963, com apoio do Dr. W. E. Kerr, que o convidou para uma expedição aos arredores de Manaus. Nesta ocasião, teve seu primeiro contato com floresta e com as belíssimas construções produzidas pelas abelhas, e que foram tão perfeitamente ilustradas por ele (Kerr et al. 1967). Os exemplares coletados naquela ocasião foram identificados pelo Pe. J. S. Moure e "constituíram o embrião da atual coleção", como relatado por ele mesmo em seu Memorial. Em 1966 fez uma viagem solo, de 10 dias, à região de Porto Velho, onde estudou, em detalhe, os ninhos de 10 espécies de Meliponini, e que resultou em sua primeira publicação individual (Camargo 1970). A partir daí, foram inúmeras viagens e expedições científicas, que contribuíram para a montagem do acervo de uma das mais importantes coleções de Meliponini Neotropicais do mundo - a única que inclui também peças das obras construídas por essas abelhas - com mais de 800 ninhos meticulosamente estudados. Mantinha um bom relacionamento com pesquisadores do Brasil e do exterior o que propiciou a incorporação ao acervo de duplicatas da coleção Moure e da coleção Schwarz, inclusive espécimes-tipo, e conferiu maioridade e reconhecimento da coleção em nível internacional. Daí em diante, o intercâmbio constante, além de viagens e levantamentos, permitiu enriquecer consideravelmente a coleção, atualmente sediada no Departamento de Biologia da FFCLRP. Este talvez seja o legado mais precioso para as futuras gerações de estudiosos das abelhas.
Iniciou-se na carreira científica em 1961, quando foi contratado como desenhista pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro (atual UNESP) e teve contato com um grupo forte de pesquisa em genética, biologia e taxonomia de abelhas, liderado pelo Dr. Kerr, e com pesquisadores convidados, como S. F. Sakagami, com quem publicou seu primeiro trabalho (Sakagami & Camargo 1964). Nesse período, além de ilustrar dezenas de artigos para vários pesquisadores, iniciou suas próprias pesquisas com abelhas, como o estudo sobre a morfologia externa de Melipona marginata Lepeletier (Camargo et al. 1967), que incluía pranchas desenhadas por ele, impressas em tamanho grande, para serem afixadas em paredes de laboratórios e salas de aula, além de uma operária colorida a guache - uma obra de referência para estudiosos da morfologia de abelhas. A partir de 1965 foi contratado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Nesse período, dedicou-se em grande parte, ao estudo das abelhas africanizadas, morfologia, técnicas de inseminação artificial e apicultura, o que resultou em vários artigos e na editoração do livro Manual de Apicultura (Camargo 1972), com três capítulos de sua autoria, além de trabalhos com outras abelhas. Cursou o mestrado em Entomologia na Universidade Federal do Paraná, estudando a diferenciação geográfica das espécies amarelas de Partamona Schwarz, sob orientação do Pe. Moure, e a dissertação resultante foi publicada integralmente (Camargo 1980).
 
 
Foi contratado como Professor Visitante na Universidade Federal do Maranhão em 1981, e, mais tarde, de volta a Ribeirão Preto, assumiu a disciplina de Entomologia Geral I no curso de Pós-Graduação em Entomologia da FFCLRP, onde foi contratado como técnico de nível superior. O doutorado veio em 1991, com o estudo da sistemática e comportamento dos Meliponini necrófagos obrigatórios, e em 1996, foi concursado como Professor Doutor. Não media esforços na preparação das aulas, e também na orientação de seus alunos de mestrado e doutorado, o que resultou em oito dissertações e oito teses, além de várias monografias de graduação e supervisão de dois pós-doutorados.
Em 45 anos de dedicação a ciência, foram muitas as contribuições para a sistemática e comportamento das abelhas-sem- ferrão: 89 publicações, coincidentemente, também foram 89 os táxons publicados por ele (três gêneros e 86 espécies), todos de abelhas-sem- ferrão, com uma única exceção: Xylocopa (Neoxylocopa) suspecta Moure & Camargo. Revisou a sistemática e comportamento de nidificação de vários gêneros, resultando em artigos ricamente ilustrados (e. g. Camargo & Moure 1994; Camargo & Pedro 2003). A descoberta de uma nova espécie, Trichotrigona extranea Camargo & Moure, com peculiaridades morfológicas e comportamentais - não constrói potes, nem armazena qualquer tipo de alimento -, levou a publicação de um novo gênero (Camargo & Moure 1983; Camargo & Pedro 2007a). Deu a conhecer, também, outros comportamentos inusitados para os Meliponini, como a estocagem de pólen associado com leveduras, que promovem a dessecação e longevidade na ensilagem, só conhecida em espécies de Ptilotrigona Moure (Camargo et al. 1992; Camargo & Pedro 2004), as abelhas necrófagas obrigatórias, que não coletam pólen, nem néctar floral (Camargo & Roubik 1991), e a associação mutualística de Schwarzula coccidophila Camargo & Pedro com cochonilhas (Camargo & Pedro 2002).
Dono de uma acuidade singular na percepção dos pequenos detalhes, mas sem perder a visão do conjunto, Camargo foi capaz de elucidar um pouco da complexa história evolutiva dos Meliponini Neotropicais. Propôs hipóteses de filogenia para vários gêneros, traçou mapas de endemismo e definiu padrões na distribuição do grupo, propondo eventos de quebra e vicariância para explicar a atual diversidade taxonômica encontrada na região Neotropical; conjugando espaço, tempo e forma, concluiu que a Amazônia não é uma unidade histórica, mas sim composta de três grandes compartimentos biogeográficos com relações temporais e filogenéticas distintas (Camargo 2008).
Tinha, por hábito, manter sempre atualizado o seu fichário sobre os Meliponini, nos moldes daquele iniciado pelo Pe. Moure, em Curitiba, acrescentado novas referências sobre as espécies e os assuntos de que tratavam; essas informações, além de atualizações sobre a taxonomia e comentários sobre as espécies, foram compiladas em um capítulo do Catálogo Moure (Camargo & Pedro 2007b), também disponibilizadas online.
Há que se destacar, também, os estudos sobre a bionomia de abelhas Euglossini (e.g. Zucchi et al. 1969), etnobiologia dos índios Kayapó (e.g. Camargo & Posey 1990), comportamento de visita às flores e mecanismos de polinização (e.g. Camargo et al. 1984), além de trabalhos sobre estrutura de comunidades de abelhas visitantes de flores em diversos ambientes.
Seus magníficos desenhos de abelhas, ninhos e flores percorrem o mundo e têm sido reproduzidos em diversas publicações (e.g. Michener 1974; Gottsberger & Silberbauer- Gottsberger 2006).
Perdemos um entomólogo brilhante, que soube como ninguém, retratar as mais belas obras da natureza. Seu legado artístico e científico não será esquecido. João M. F. Camargo faleceu em 07 de setembro de 2009, aos 68 anos em conseqüência de um câncer agressivo.
"Infinitas formas de grande beleza"*: era assim que ele via a natureza (*título do livro de S. B. Carroll (2006), que ele recomendava aos alunos como leitura adicional, e também o nome escolhido pela turma de formandos do curso de Ciências Biológicas da FFCLRP de 2009, que o escolheu como Professor Homenageado, pouco antes de adoecer).
Agradecimentos. Ao Prof. Dr. Gabriel A.R. Melo (Editor Associado da Revista Brasileira de Entomologia) pelo convite para escrever o necrológio do Dr. João M.F. Camargo.
 
REFERÊNCIAS
Camargo, J. M. F. 1970. Ninhos e biologia de algumas espécies de Meliponídeos (Hymenoptera: Apidae) da região de Pôrto Velho, Território de Rondônia, Brasil. Revista de Biologia Tropical 16: 207-239.         [ Links ]
Camargo, J. M. F. (Org.). 1972. Manual de Apicultura. São Paulo, Editora Agronômica Ceres, 252 p.         [ Links ]
Camargo, J. M. F. 1980. O grupo Partamona (Partamona) testacea (Klug): suas espécies, distribuição e diferenciação geográfica (Meliponinae, Apidae, Hymenoptera) . Acta Amazonica 10 (4, supl.): 1-175.         [ Links ]
Camargo, J. M. F. 2008. Biogeografia histórica dos Meliponini (Hymenoptera, Apidae, Apinae) da região Neotropical, p. 13-26. In: P. Vit. (ed.), Abejas sin Aguijón y Valorización Sensorial de su Miel. Mérida, APIBA-DIGECEX, Universidad de Los Andes. 148 p.         [ Links ]
Camargo, J. M. F. & J. S. Moure.1983. Trichotrigona, um novo gênero de Meliponinae (Hymenoptera, Apidae) do rio Negro, Amazonas, Brasil. Acta Amazônica 13: 421-429.         [ Links ]
Camargo, J. M. F. & J. S. Moure. 1994. Meliponinae Neotropicais: Os Gêneros Paratrigona Schwarz, 1938 e Aparatrigona Moure, 1951 (Hymenoptera, Apidae). Arquivos de Zoologia, S. Paulo, 32: 33-109.         [ Links ]
Camargo, J. M. F. & S. R. M. Pedro. 2002. Mutualistic Association Between a Tiny Amazonian Stingless Bee and a Wax-producing scale insect. Biotropica 34: 446-451.         [ Links ]

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